quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Sobre a origem do pensamento político – Parte II

Do ideal grego de educação em Homero, avançamos para o ideal de Platão, sob lume do pensamento filosófico, que emergiu das colônias gregas na Ásia Menor a partir do século VI a.C., com Tales de Mileto.

Platão, ainda jovem, demonstra enorme fascínio pela política, principalmente após o seu encontro com Sócrates. Com seu mestre, aprende a importância de fundamentar a atividade política em conceitos claros e seguros. Os “diálogos socráticos”, nos quais Sócrates é o personagem central, servirão para Platão tratar e discutir os principais temas ligados à política, já que nesse momento se vive o período humanista da filosofia.

Seguindo na trilha de Platão, encontramos no diálogo Górgias, a primeira grande tese de seu pensamento político. Nela subjaz a máxima: "a 'verdadeira arte política' é a arte que 'cura a alma' e a torna a mais 'virtuosa' possível, sendo, por isso, a arte do filósofo”. (REALE, 1990, p.162). Para entender a tese platônica, que à luz de aspectos fundamentais assume função preponderante na sua teoria política, torna-se necessário analisar e identificar quais premissas servem ao ideal platônico.

Quando Platão pensa na cura da alma, há na sua teoria uma premissa denominada educação. Quando ele pensa no filósofo como educador, há na sua tese a participação do filósofo – o homem político – que precisa adquirir suficiente aptidão para desempenhar o governo da cidade. Por isso, na obra A República, o empenho de Platão é indicar o melhor caminho para transformar o indivíduo em cidadão e o filósofo no melhor governante. Sem isso, não haverá polis, a cidade-Estado, o espaço da democracia, do bem estar e da justiça.

No diálogo Sofista, Platão, inspirado por auspiciosa sagacidade, pensa o ensino a partir de uma dicotomia distinta. Para ele, a primeira parte é a competência para o ensino da técnica, enquanto que a segunda parte é a competência para educar. A educação, por sua vez, desfaz os vícios da alma, enquanto a técnica prepara para o trabalho. Como se vê, não respeitamos a teoria sugerida por Platão, e o que percebemos hoje é um mundo altamente tecnológico e assaz desumano.

Misturando os universos da técnica e da formação humana, sentimo-nos, mais uma vez, frustrados pelo ideal não alcançado. Assim vivendo, geramos uma incongruência de difícil solução. Confiando apenas na técnica, perdemos o homem e ganhamos a técnica ao invés de ganhar a sua alma. Assim, alienado da realidade e alijado da vida comunitária, o “cidadão coisificado” aguarda, esperançoso, o amparo de uma deusa que com voz sibilina o libertará do jugo desumanizante.

Muitos ainda pensam que Platão era ingênuo ou que o seu ideal era utópico. Na verdade, o que falta em nós, homens secularizados, é um pouco da sua perspicácia. Por isso, nos tornamos homens sem alma, sem memória e sem historicidade. Como resultado da cronologia do tempo, o que somos, senão, apenas arquétipos da história?

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Sobre a origem do pensamento político – Parte I


O ser humano precisa ser educado para a convivência, pois na medida em que vive, convive. Viver e conviver é existir. Por sua vez, existir é partilhar com o outro as diferenças, os desejos, as virtudes e as semelhanças. É através do enlace existencial – entre eu e o outro – que o existir se faz vivência. Por isso, cada homem precisa ser educado e despertar em si o inteligível. É através do inteligível que ele supera as diferenças, consolida as semelhanças, e cria um ambiente favorável para o surgimento da comunidade, o espaço comum de convivência.

Para os gregos, a educação, desde os primórdios, teve valor inestimável. Na obra Paideia, Jaeger escreve: “O Helenismo ocupa uma posição singular. A Grécia representa, em face dos grandes povos do Oriente, um ‘progresso’ fundamental, um novo ‘estágio’ em tudo o que se refere à vida dos homens na comunidade. Esta fundamenta-se em princípios completamente novos. Por mais elevadas que julguemos as realizações artísticas, religiosas e políticas dos povos anteriores, a história daquilo a que podemos com plena consciência chamar cultura só começa com os gregos”. É com eles que a educação vai atuar sobre o homem e proporcionar a devida formação humana.

É com o surgimento dos poemas homéricos, Ilíada e Odisseia, entre o século X e  VIII a.C. que a história da formação humana tem início na Grécia de Homero. Para ele, o conceito de “Arete” assume função preponderante na formação do homem grego. Não temos na língua portuguesa um equivalente exato para este termo. Ele é problemático e de difícil entendimento, até mesmo para os gregos.

“Arete” é um princípio que designa a excelência humana e precisa ir além da virtude como mero conceito ético/moral. Visa despertar, em cada homem, elevada autoestima, conduta cortês e distinta e, também, aniquilar o individualismo. O princípio espiritual dos gregos não é o individualismo, e sim o “humanismo”. Por isso, o conceito de “Arete” surge e se firma no seio do povo grego, quando pela educação como processo histórico, eles assimilam os valores humanos e negam o individualismo.

Para os gregos, o fim último da educação era – pela paideia – dispor ao homem grego acesso à sua humanitas. No entanto, sabe-se que o desejo grego de consolidar no homem a sua natureza humana se inviabiliza, à medida que o seu agir, guiado pelo imperativo dos instintos – predominância do ente sobre o ser – se configura na cronologia amarga do tempo vivido.

Hoje sentimos os efeitos deste influxo existencial, justificado pela dificuldade em superar o egocentrismo predominante no comportamento humano do nosso tempo. O ideal grego ainda não foi alcançado.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Aversão pela filosofia

Sabe-se que ao longo do tempo a filosofia atraiu para si indisfarçável antipatia. As razões não são facilmente identificáveis. Mas, quando despertamos nas pessoas o interesse por filosofia, o que era tácito torna-se explícito, e elas não conseguem evitar a rejeição que sentem por ela. Quase sempre consideram a filosofia enfadonha, sem utilidade e de difícil entendimento. De fato, ela não é utilitarista, não tende para o particular ou para o relativo, ela estima para si o saber sobre o todo, desconfia que o genuíno encontra-se encoberto na origem. Percebe desde os primórdios que a ignorância é uma latência transitória, algo a ser desvendado.

O que talvez deixe a filosofia chata ou cansativa é a metodologia por ela adotada durante o processo dialético e argumentativo – o filosofar autêntico – competência desenvolvida pelos primeiros pensadores para realizar a justificação racional. Por sua vez, a ignorância é superada na medida em que cada etapa desse processo argumentativo avança e se expande. Portanto, o conhecimento resultante é uma atividade da razão pura, definitivamente desmistificada pelos gregos.

Já na idade média, a razão é interpelada arbitrariamente pela fé, que gera o dogma e, com ele, surge o sortilégio nefasto que interrompe a caminhada dialética, cerceando a liberdade da razão, instaurando no homem o instinto de rebanho. Dessa forma, o livre pensar perde a autonomia para a fé e a razão se deixa subjugar pela dogmática instituída. Desde então, vagamos e divagamos, não se sabe ao certo. Sabe-se apenas que sucumbimos e desaprendemos a pensar. Prisioneiros dos círculos concêntricos do mero existir, perambulando, perdemos a capacidade de pensar verticalmente. Hoje somos homens vivendo na horizontalidade. Será isso de fato o que somos?

A filosofia pode devolver a cada um de nós a autoestima suplantada pela dogmática histórica. Pode nos ajudar a resgatar a plena capacidade da razão livre e pensar sem o medo e o dogma das doutrinas. No entanto, o homem contemporâneo, que apenas se move sob a pressão dos círculos existenciais, ainda deixa-se arrastar pela força de doutrinas combalidas e corroídas pelo tempo. Não querendo se libertar, preserva em si mesmo indícios de um primitivismo incontestável e pouco evoluído. O que deveria tê-lo humanizado não o fez, mas mesmo assim, não o liberta e nem o deixa prosseguir.

O homem do senso comum pensa que a filosofia atua sobre o imponderável e julga o ato filosofante como devaneio ou perda de tempo. Filosofar não é divagar, é a busca pelo ponderável desconhecido, é um ato livre do puro pensamento. Pena que ainda não fomos suficientemente adestrados para o ato filosofante puro, tão necessário e indispensável para a nossa humanização. 

segunda-feira, 7 de março de 2016

Oficinas filosóficas têm local definido


As oficinas filosóficas, neste ano de 2016, ocorrerão no Espaço de Arte Daniel Bellora, na Rua Três de Maio, 1005, em Pelotas (RS).

A primeira oficina abordará o tema “Introdução ao Filosofar” e está programada para o mês de abril. Serão quatro encontros, sempre à tarde.

Em breve, definiremos os dias da semana e os horários em que as oficinas ocorrerão.

Os interessados já podem se inscrever. Mais informações pelo facebook João Alberto Tissot, aqui pela página Filosofar é Preciso, no blog ou via e-mail.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Um pouco sobre filosofia moral


João Alberto Acunha Tissot
Licenciado em Filosofia


Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais ou internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no Brasil, milhares de pessoas morrem de inanição. Sentimos piedade e ficamos indignados. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Esses sentimentos e ações desencadeadas por eles exprimem nosso senso moral, a maneira como avaliamos nossa situação e a de nossos semelhantes, segundo ideias como as de justiça e injustiça. (CHAUI, 2011, p. 261).

Não basta ficarmos comovidos ou indignados diante de tais circunstâncias, precisamos por à prova a nossa consciência moral, e com ela agir com autonomia e não sob a influência dos costumes que herdamos pela tradição da sociedade em que vivemos. A filosofia moral ou a ética nasce quando se passa a questionar o que são e o que valem os costumes. Sócrates é quem inaugura essa reflexão. É ele que passa a perguntar qual o sentido dos costumes transmitidos de geração em geração, pergunta também quais as disposições de caráter que levam alguém a respeitar ou a desrespeitar os valores herdados pela tradição.

Sócrates descobre a consciência do agente moral, ou seja, que para se tornar um sujeito ético, cada pessoa precisa saber como se faz, conhecer as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções, de suas atitudes e a essência dos valores morais. Desse modo, percebe-se que só haverá comportamento ético numa sociedade, se nela houver a presença atuante do homem sem vícios, o homem ético.

“Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também se reconhece como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética”. (CHAUI, 2011, p. 266).

Mesmo passado tanto tempo, ainda podemos perceber o vigor e a originalidade do filosofar socrático. Ele permanece atual, embora pouco assimilado por nós. A filosofia afastou-se do seu ponto de origem, o pensar filosofante, decidiu percorrer outro caminho, preferiu tangenciá-lo, e isso é lamentável. Os pensadores originários foram alijados do processo filosofante.


CHAUI, MARILENA. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2011.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A descoberta do eu racional

João Alberto Acunha Tissot
Licenciado em Filosofia

O conhecimento e a descoberta do inteligível ainda são os meios que permitirão ao homem, de forma inequívoca, progredir e avançar nas questões humanas, tornando-o solidário e compreensivo no grupo social onde vive. No entanto, não é o que se vê, pois ele insiste em se manter fiel a crenças que não conseguiram comprovar o que preconizavam, impondo-lhe inúmeras derrotas e raríssimas vitórias.

O homem, ente humano dotado de autonomia, escolheu para o seu agir o arbítrio e a deliberação amparada no eu existencial. Esquecendo-se de ponderar sobre si mesmo, passou de imediato a participar do mundo da vida, consigo e com os outros, estabelecendo para esse fim inúmeras relações humanas. Como corolário de suas atitudes, surgiram as dificuldades, os conflitos e as aflições, evidenciando sua insensatez.

Ao longo do tempo, o homem descuidou-se da sua humanização, dedicou-se a técnica, especializou-se na arte mecanicista, não aprendeu a pensar. Ele pensa, e sabe-se que sim, no entanto, quando pensa, volta seu pensar sobre si mesmo, ignora o outro e ainda inclui na sua indiferença, a natureza e o meio ambiente. Mesmo assim, reclama. Ele não sabe o que é alteridade, conceito filosófico que diz: “Ser outro, pôr-se ou constituir-se como outro”.

Imobilizado, aguarda, talvez, um movimento mágico, uma ação dos “deuses” na expectativa de encontrar um sentido para seu eu existencial. Ele não aprendeu a atuar pragmaticamente, não soube construir seu mundo, ele desconhece a sua natureza racional livre, a sua legítima autonomia. Ele solapou de si mesmo o que tem de melhor.

Georges Gusdorf, filósofo francês, diz: “A união da alma e do corpo, constitutiva, apesar de tudo, da realidade humana, reduz-se ao resultado de um encontro casual, prejudicial, aliás, à expansão do pensamento puro. É necessário fazer suas opções para viver, mas tanto quanto possível para filosofar. Porque é possível pensar sem o corpo, ou contra ele se for preciso, mas nunca com ele”.

Portanto, assimilemos tal pensamento e com ele resgatemos a nossa legítima autonomia, consolidando aquilo que ainda não se tornou uma experiência efetiva para nós, homens do nosso tempo.


domingo, 10 de janeiro de 2016

Em defesa do mito

João Alberto Acunha Tissot
Licenciado em Filosofia

O uso frequente que se faz da sentença “é mito ou verdade”, quando se quer resolver um dilema qualquer, é no mínimo indevida ou equivocada. A sua insistente repetição induz no homem do senso comum a certeza de que ela é legítima. Daí se conclui que, quando ele quer elucidar os dilemas do seu cotidiano existencial, segue a tradição e considera a falsidade da palavra “mito”, ignorando o seu real significado.

O primeiro aspecto que precisamos considerar, e com ele realizar um trabalho confiável sobre o que é o mito, é a necessidade de preservar e utilizar as referências que nos foram legadas por pesquisadores confiáveis, tais como Mircea Eliade e Georges Gusdorf, por exemplo. Sem esse cuidado, persistiremos no equívoco da mera opinião que, segundo Platão, corresponde ao erro. Ele foi o primeiro a tratar a questão com relevante seriedade, ao propor um princípio de ciência para a sua filosofia, o que segundo ele, possibilitaria chegarmos ao conhecimento autêntico.

O mito e a sua respectiva investigação nos põem diante de uma realidade cultural extremamente complexa, podendo ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares, segundo Eliade. Em virtude disso, o zelo ao tratar de uma realidade tão significativa para a história da humanidade requer de cada um de nós, dotados de vocação filosófica, uma diligente maestria na sua abordagem.

Outro aspecto que cabe salientar é a distinção que há entre o valor semântico do termo “mito”, reconhecido pela tradição, como “fábula”, “invenção” ou “ficção”, e a nova acepção assumida a partir do trabalho dos etnólogos, sociólogos e historiadores das religiões. Para eles, o vocábulo “mito” designa uma “história verdadeira”, dotada de “caráter sagrado, modelo exemplar e revelação primordial”. O mito, desse modo, justifica o surgimento de uma realidade que não existia. Ele faz uma narrativa a respeito “de algo que foi produzido e começou a ser” e, por isso, merece nossa atenção, reflexão e interesse.

É seguindo essa perspectiva que devemos conduzir nosso estudo e trabalho, pois foi deste modo que esses pesquisadores conseguiram seus melhores resultados. Se mudarmos o rumo da nossa investigação, estaremos assentindo com premissas duvidosas ou distorcidas.

Não é aconselhável, portanto, tomar como ponto de partida a mitologia grega, por exemplo, pois a maioria dos seus mitos foi recontada e, consequentemente, modificada, articulada e sistematizada por Hesíodo e Homero.